09 julho 2017

"nu"

Aimeudeus, que o armazém de minis do Cristovam ainda rebenta com o carregamento que vou ter de lhe mandar por causa de escrever um post com tanto atraso (1), mas o que tem de ser tem muita força, tanto o escrever com atraso como o pagamento das minis, e por isso ala que se faz tarde rumo ao meu destino.
É que estou de férias, longíssimo da internet. É certo que ao fundo do quintal tenho a internet que a vizinha me empresta, mas como tem estado de chuva a internet fica-me muito para além da minha zona de conforto. Hoje está um dia mais agradável, posso aviar de uma vez as palavras todas dos últimos oito dias. Podia, se tivesse meios para pagar todas as minis, e o Cristovam armazém para as guardar. Ainda põe o Doutor (2) a dormir ao relento - sabe-se lá se o tempo muda e dá origem a uma nova frase idiomática, que seria o contrário de "tirar o cavalinho da chuva". Tipo, sei lá, "chover na careca do Doutor". De cada vez que um enciclopedista não cumpre as regras, chove na careca do Doutor. Ou então, só para usar a palavra mágica: anda um burro nu na rua.
(Não acredito que já escrevi isto tudo e ainda não disse ao que venho!)
Passa-se que no dia em que na enciclopédia a palavra mágica era "nu", eu estava a fazer férias com a modelo do grupo de pintores berlinense do meu marido. Durante os próximos dias a nossa casa minhota vai ser uma pequena colónia de artistas, e a modelo veio uns dias antes. Perguntem-me sobre nus, sei tudo: já vi esta mulher trabalhar, e é excelente. Muito diferente da mim, naquela manhã de sábado em que o Joachim perguntou "posso pintar-te?" e eu estendi-me nua na cama a ler um livro e disse "pinta praí". Outros têm musas, o Joachim tem uma megera. Mas faço isto para bem dele, diz que o sofrimento molda o carácter. Um dia ainda me há-de agradecer, e dizer "devo-te tudo o que sou".
(Quantas piscadelas de olho terei de pôr para perceberem que estou a brincar?)
Uma amiga, que é da área da Literatura e em tudo descobre o simbolismo e o filme, perguntou-me que tal estavam a ser os dias da esposa e da modelo. Não sei. Não me ocorreu pensar nessas categorias, embora agora, depois do que ela disse, me pareça que tinha aqui material para um belo filme. Ou livro.
As "férias da esposa e da modelo" têm sido assim: ontem andei desesperada atrás da empresa Hermes que não entregava os quadros que enviámos de Berlim para a exposição em Ponte de Lima. A vernissage é já amanhã, chama-se "Nudes from Berlin", e comecei a temer que íamos mostrar as paredes nuas: "Nudes from Ponte de Lima". Depois de as caixas aparecerem respirámos fundo e fomos à feira de Barcelos (Carlos, estavam lá as tuas cruzes!) e depois fomos apanhar uma chuvada valente na minha praia favorita, a de Forte de Paçô, comprámos congro no pescador do porto de Viana e fizemos um belo arroz.
Esta manhã a modelo - que é bailarina - levantou-se e começou a fazer exercícios de sentir o corpo. Balançava a sua figura esguia até o corpo inteiro vibrar com a graça da gelatina, convidou-me para a acompanhar. Que eram apenas vinte minutos. Ora, eu já estava a sentir o corpo há que horas, uma fome desgraçada, e já estava sentada em frente ao pãozinho branco, à compota de alperce deliciosa que a vizinha me deu, ao paio de Felgueiras. Bom apetite!, disse-lhe eu, e comecei a comer.
Fomos à praia. Estava cinzenta, e fizemos uma caminhada. Vamos até Lisboa?, propus. Vamos, pois!, respondeu. Mas decidimos não ir, porque não nos apetecia atravessar os rios a nado.
Depois tomámos um longo banho. Eu virava os pés para as vagas para ver as pequenas cataratas que nasciam entre os meus dedos, e ela dançava as suas voltas de dervixe no sítio onde as ondas se arrebentavam em espuma.
Ela diz que eu liberto o seu lado mais infantil. Sinto sempre uma enorme estranheza quando me dizem o que recebem de mim, quando não faço mais que dar água sem caneco.
E depois falámos de coisas muito sérias. Ela já trabalha como modelo há 15 anos, e está farta. Aceitou fazer este trabalho por ser com este grupo, mas sente-se cada vez mais vazia e cansada, suspeita cada vez mais de quem a pinta. É que, quando começou, decidiu trabalhar da forma mais exigente: mostrar a alma ainda mais que o corpo. E sente que as pessoas não dão o devido valor ao que ela lhes oferece.
Digo-lhe a frase que ouvi a um dos pintores: é preciso saber olhar com pudor para o corpo nu. Penso na riqueza desse exercício partilhado de nudez: a modelo que revela a alma, o pintor que revela o carácter.
E agora, mudando completamente de assunto: nos lagos alemães onde se pratica o nudismo aprendi que um corpo nu pode ser a coisa menos erótica do mundo. Talvez seja porque as pessoas deixam a alma em casa, e trazem apenas o corpo para a sonolência do sol.

(1) Na Enciclopédia Ilustrada as multas são pagas em minis.
(2) Provavelmente adivinharam (como eu): "Doutor" é o nome de um garboso burro - estou em crer que é o burro mais apreciado de todos os enciclopedistas.


Sem comentários: