01 agosto 2017

a propósito de Sam Shepard, que está a morrer no facebook

O Carlito Azevedo fez uma bela homenagem a Sam Shepard. Copio-a para este blogue, e destaco algumas frases do conto de Shepard, que, sem o saber, descreveu muito bem o que sentimos quando o facebook começa a multiplicar sinais de quem morreu:

"Aquela vez em Knoxville quando a gente estava se beijando no trem, aquele beijo longo, longo, que demos na despedida, e de repente o trem começou a se mover, mas eu não ia com ela, e era justamente por isso que a gente estava se despedindo, porque pensávamos que não nos veríamos por muito, muito tempo e estávamos concentrados no beijo... apenas nos beijando e beijando e de repente o trem começou a se mexer e não havia maneira de descer."


Carlito Azevedo
17 h ·
Ainda bem que a Patti Smith anda se encarregando, em livros como os belíssimos "SÓ GAROTOS" e "LINHA M", de contar a história de um tempo que, se ela não contar, depois ninguém vai acreditar que uma vez foi possível um tempo tão cheio de possíveis. Um dos grandes personagens dessa trama se foi ontem desse vale de lágrimas e risos, descansa em paz, Sam Shepard.


CONVULSÃO (conto breve de Sam Shepard)

Se ela pudesse me ver agora, estou certo de que se apaixonaria por mim, aposto o que for. Aposto o que for que sim. Como não se apaixonaria? Olha pra mim. Olha como estou. Se ela pudesse me ver assim: esperando por ela, horas antes, muito antes de ela chegar, buscando qualquer sinal ou rumor de sua presença. Ela veria como estou empolgado com nosso lance. Veria o desespero no meu peito. Se ela pudesse me ver agora, lá de longe, sem que eu soubesse que está me olhando, me veria tal como eu sou. E aí, como poderia não sentir algo por mim? Ou talvez não. Talvez isso seja... quer dizer, talvez atitudes como essa provoquem repulsa. Não sei exatamente como isso funciona, mas... talvez nasça um sentimento de repulsa quando alguém está empolgado demais... disponível demais, dependente demais. Não sei. Alguma convulsão. Não. Não, isso não. Se pudesse recordar aquela vez – quando foi? Aquela vez em Knoxville quando a gente estava se beijando no trem, aquele beijo longo, longo, que demos na despedida, e de repente o trem começou a se mover, mas eu não ia com ela, e era justo por isso que a gente estava se despedindo, porque pensávamos que não nos veríamos por muito, muito tempo e estávamos concentrados no beijo... apenas nos beijando e beijando e de repente o trem começou a se mexer e não havia maneira de descer. Árvores e casas desapareciam a toda velocidade. No final, me deixaram na estação seguinte, que ficava a muitas milhas de casa, e ali estava eu, esperando durante horas o próximo trem que me levasse de volta. Se ela pudesse me ver naquela hora, de pé, ali, esperando, estou certo, certo, de que iria me querer. Ou seja, como poderia não sentir algo... não sei. Já não sei o que é que faz com que as coisas aconteçam, essa conexão. Se é que houve alguma vez.



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