15 agosto 2017

deixaram-me entrar

Confesso que estava um bocado apreensiva com a passagem da fronteira para entrar nos EUA. O pessoal da Immigration nunca exagerou na simpatia, e as notícias que vão chegando à Europa sobre a facilidade com que se atropelam os direitos e a dignidade dos humanos afectam o optimismo e aquela confiança pueril que faz crer que tudo vai correr bem. Desta vez voei para os EUA temendo que alguma coisa corresse realmente mal, e não me deixassem entrar. De modo que andei numa de self-fulfilling prophecy, só fiz asneiras.

Começou em Amesterdão: o agente na entrada da zona dos aviões para os EUA queria saber dos motivos da minha viagem, e eu passei o tempo todo a dizer "nós". Como não tinha ar de princesa, ele quis saber quem era "nós", já que estava sozinha.
- Ah, claro! É o meu marido, que já está nos EUA, num congresso.
- E o que vão fazer? Onde vão estar?
- Férias. Vamos para Oregon, eclipse, avenue of giants, San Francisco. Depois o meu marido vai para o Burning Man...
- Burning Man? Queimam pessoas?! Isso parece perigoso.
- [ ai! já foste, Heleninha! Estás aqui estás a ser presa por suspeita de violência e terrorismo ] É um festival, em Nevada. Nunca ouviu falar? Setenta mil pessoas.
- Que tipo de pessoas vão para esse lugar? O seu marido é uma pessoa muito espiritual?
- [ ai! mete a marcha-atrás a duzentos à hora, Heleninha, faz-te de pateta ] Beeeem, nós somos católicos...
- Boa viagem, então.

Na máquina de controlo do passaporte correu tudo bem, mas a seguir tinha de ficar quieta para tirar uma fotografia. Olhei para o espelho à minha frente, e dei com o meu ar descomposto, de quem se tinha levantado às quatro da manhã, pareceu-me que o decote do vestido estava exagerado. Pensei que não queria a minha imagem naqueles preparos sabe-se lá nas mãos de que polícia, e tentei fechar o casaco - justamente no momento em que a câmara disparou. De modo que vai andar por aí uma foto minha a tentar compor pudicamente o decote.

Em Portland dei-me conta de que me tinha esquecido de trazer comigo o formulário ESTA. Engoli em seco, pensei que era agora que me iam mandar de volta para a Europa. O scanner do meu passaporte não funcionou. Depois funcionou, mas não conseguiu registar as minhas impressões digitais. Tentei uma segunda máquina. Também encravou. Pedi ajuda a um agente. Surpreendentemente correu tudo sem problemas e ele deu-me um impresso que tinha uma cruz enorme sobre o meu nome e restantes dados. Pensei "pronto, já foste! Regressas no mesmo avião, vais ver mais 4 filmes que te regalas..." Mas deixaram-me passar.

Na Alfândega perguntaram-me se trazia álcool comigo, e eu achei que me estava a perguntar se sou daquelas pessoas que andam com uma garrafa de aguardente no bolso do casaco - sim, só tinha dormido 3 horas depois de ter andado várias horas a segar relva praticamente de cócoras, e estava completamente atordoada - de modo que respondi "oh, nããããooooo!" como se ele tivesse feito uma insinuação ofensiva. Depois perguntou-me se trazia carne, "dairy" (oh, maldita pergunta para quem trazia um quilo de queijos austríacos e da Ilha), sementes, frutos, nozes...
- Não...
Olhou para mim com ainda mais atenção, levantou uma sobrancelha:
- Tem a certeza?
- Bem... tenho alguns queijos velhos em bloco.
- Ah, OK.
- E agora me lembro: há bocado, quando lhe respondi sobre o álcool, esqueci-me completamente que tenho duas garrafas de vinho português para oferecer aos meus amigos.
- OK. Boas férias, então.

Depois só tive de mostrar o passaporte mais meio milhão de vezes, e entrei nos EUA.

Tenho a sensação que os agentes foram mais simpáticos que habitualmente. Suspeito até que estavam a tentar contrabalançar as notícias que vamos recebendo dos EUA.


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