02 agosto 2017

resposta da avó

O Pedro Farinha escreveu alguns "recados para uma avó que vai ficar com os netos alguns dias em agosto". Pergunto-me o que é que ele tem contra aquilo que quer ridicularizar. Fiquei na dúvida entre deixar que a avó lhe respondesse, ou um neto dele. Responde a avó (uma avó nascida em 1900, avó de ranchadas de netos, e só não eram mais porque naquele tempo isso era "coisa que morria muito"). Mas também é um bom exercício pensar na resposta que esta carta poderia receber daqui a 25 anos.


• A Matilde não come arroz. Diz que fica enjoada. Ainda não percebemos bem de onde vem isso, pensámos que fosse do glúten, mas ela só come arroz sem glúten. Aliás, ela não come glúten. A nutricionista naturopata recomendou. Também não come ovos de aviário.
-- Ovos de aviário?! Que é isso?
Ela que me diga que fica enjoada, que vai ver: há-de comer o dobro, até lhe passarem os enjoos.


• Deixei um saco com comida para os miúdos. Arroz sem glúten, massa sem glúten, bolachas sem açúcar, alfarroba desidratada e biscoitos de aveia e quinoa dos Andes.
-- Ainda bem que deixaste essa comida toda. Vou dar também às jornaleiras, que este mês o dinheiro está mais escasso que de costume, e está a ser difícil ter com que lhes fazer a merenda.

• Não lhes dê bolos de pastelaria. Nem sumos de pacote. Nem leite de vaca. Nem chocolates. Nem leite com chocolate.
-- Pastelaria?! Sumos de pacote?! Chocolates?! O que é isso?
E que tens tu contra a nossa Margarida, uma vaquinha tão asseada? Até lhe limpamos a corte quase todos os anos. Vais-me falar outra vez de salmonelas e brucelose? Ora! Hão-de ir beber o leite às tetas da vaca, que é assim que ele sabe melhor. E o que não mata, engorda!


• Eles não comem nada que tenha açúcar refinado. Eu sei que a mãe faz um bolo de cenoura ótimo, mas se fizer use apenas açúcar amarelo. Mas só metade da dose. E cenoura biológica.
-- Claro que só uso açúcar amarelo e só metade da dose. Tu pensas que o dinheiro cresce nas árvores?! E que te leva a pensar que faria um bolo em Agosto? A Páscoa foi em Abril. E o Natal é só em Dezembro.
Cenoura biológica?! O que é isso? Será que estás a falar dessas modernices de produtos que o eng. Sousa Veloso mostra na televisão do café? Não quero cá disso, eles hão-de comer a cenoura que o campo dá, bem estrumadinha com a bosta e o mijo da Margarida, se é boa para mim também é boa para eles.


• Deixei também açúcar amarelo. É especial, extraído de cana-de-açúcar explorada de forma sustentável.
-- Ainda bem. Vou guardar para o Natal.

• Se eles insistirem muito para comer doces, dê-lhes uma peça de fruta biológica. Ou um abraço.
-- Eles que vão ao pomar e apanhem a fruta do chão. Aqui não há criados.

• O Pedro pode brincar com o iPad dele antes de ir para a cama. Mas não nos últimos 34 minutos antes de apagar a luz. É o que dizem os estudos mais recentes.
-- Como, "antes de apagar a luz"?! É que nem a acendem. A luz é muito cara. Vão para a cama com as galinhas, não tenho dinheiro para vícios.

• Se ele ensaiar uma fita por causa disso, não o contrarie de mais. Não lhe tire o iPad das mãos à força. Dialogue com ele. Convença-o. Queremos que os miúdos tenham capacidade de argumentação e não queremos contrariá-los de mais, para não serem castrados na construção da sua personalidade. No fim, dê-lhe um abraço.
-- Dialogo, dialogo, mas é de pau na mão. Uma boa reguada é um grande remédio para fitas. E nada de abraços, que um homem quer-se é rijo. Ainda acaba de nervos frágeis, e a fazer porcarias com outros homens.

• O iPad é a única coisa eletrónica que o Pedro tem. O psicólogo dele dizia que não devia haver tecnologia nenhuma até aos 12 anos. Mudámos de psicólogo e o outro diz que pode haver, desde que tenha jogos que estimulem a parte do cérebro onde se constroem as emoções. Como ficámos baralhados, arranjámos um terceiro psicólogo, que disse para fazermos o que quisermos.
-- Nem sei do que estás a falar, mas vejo que já esqueceste o que aprendeste em casa. Os pais é que sabem como é que se educa os filhos. Uma mãe tem sempre razão. E o pai lá está para o fazer sentir ao filho - se não for a bem, terá de ser a mal.

• Eles têm uma série de brinquedos de madeira e metal, feitos por artesãos velhinhos. Às vezes queixam-se que as rodas de lata não andam. Se for o caso, ajude-os a brincar com outra coisa qualquer, desde que não tenha plástico. Não queremos brinquedos de plástico.
-- Plástico?! O que é isso?
Brinquedos? Que os façam eles próprios, eu tenho é mais que fazer. 


• Se forem à feira e eles quiserem comprar bugigangas nos vendedores, compre-lhes uma rifa. Ou uma maçã. Ou dê-lhes um abraço.
-- Se forem à feira, é para ficarem a vender os feijões e os ovos que levo num cesto. Ou então calados e quietos ao meu lado, que é como a canalha se quer.

• Todos os brinquedos devem ser partilhados. Não há brinquedo de menina e brinquedo de menino. Se o João quiser brincar com as bonecas de linho biológico da irmã, não há problema.
-- Porque é que insistes tanto nessa mania dos brinquedos? Eles têm é um corpinho bom para trabalhar. Hão-me de ajudar no que for preciso: há muitas ervas daninhas para arrancar, muita erva para segar, é preciso tomar conta da vaca no pasto, é preciso lavar a roupa e ajudar-me a dobrar. Não te preocupes, falta de ocupação é que eles não vão ter.

• Se ele quiser vestir as saias dela, também não há problema. Não queremos limitar a identidade de género dos nossos filhos.
-- Era o que mais faltava! Não estamos no Carnaval. Talvez ali para as colheitas, nas rodas da eira, os deixe fazer essas palhaçadas. Mas sem exageros, que não queremos cá paneleiros na família.

• Há um saco com sabonete natural e champô à base de plantas medicinais sem aditivos químicos. Cheira um pouco mal, mas é ótimo para o cabelo.
-- Então agora o sabão rosa já não te serve? Estás muito fino, a cidade estragou-te.

• Mandei também umas toalhas de algodão biológico. Use só essas quando forem para a praia. São as melhores para o pH da pele deles.
-- Que tens tu agora contra os panos de linho feitos cá em casa?

• Todas as noites eles devem ouvir um pouco de música. Não pode ser o Despacito. O ideal é ser aquele CD de monges tibetanos. Aqueles sons são bons para o cérebro e para a digestão.
-- Vão ouvir música, mas é a do terço. É a música que aqui se ouve à noite. São sons muito bons para o cérebro, a digestão e a alma. Na família do papa Pio XI rezava-se sempre o terço à noite, e foi assim que ele chegou tão longe.  

• Se eles quiserem subir às árvores, podem subir. Mas devem dar um abraço ao tronco antes disso. De preferência, devem agradecer à árvore antes de subirem para cima dela.
-- Só sobem às árvores se souberem estimá-las. Da última vez partiram-me um ror de ramos, perdeu-se muita fruta.

• Eles precisam de três abraços por dia. Pelo menos. Por favor não esqueça isso. E se puder, dê-lhes abraços de pele a tocar na pele. A energia positiva assim passa de forma mais eficaz.
-- Eu dou-lhes a pele a tocar na pele, mas é com bofetadas, se precisarem. É mesmo como tu dizes: a energia positiva assim passa de forma mais eficaz.

PS 1: Mãe, não se enerve depois de ler isto tudo.
-- Estás aqui, estás também tu a levar energia positiva na pele!
PS2: Cole este papel na porta do frigorífico, para não se esquecer de nada. Mas não use fita-cola, que isso tem plástico.
-- Frigorífico?! Plástico?! Que é isso?

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