19 dezembro 2017

Vila Feliz




Glüklitz é o nome que Wladimir Kaminer inventou para a aldeia perto de Berlim onde tem a casa com jardim que comprou depois de ter sido expulso do seu talhão de agricultura urbana devido a, como ele diz com ar de gozo, "vegetação espontânea". Poder-se-ia traduzir "Glüklitz" para "Vila Feliz", ou algo do género, e no domingo passado percebi porquê.
Começa com o caminho: cheguei tardíssimo, porque estava encantada com o pôr-do-sol sobre a planície alagada, e a cada 100 metros parava o carro para tirar fotografias.

Quase a entrar na aldeia, olhei para a esquerda e vi três pássaros enormes, que não sabia identificar. Parei o carro e fotografei-os, muito satisfeita por não terem fugido logo. Depois olhei para a esquerda, e vi que havia milhares de pássaros iguais naquele campo - não se vê bem na fotografia mas, podem crer, eram milhares.



Quando finalmente cheguei a "Vila Feliz", perguntaram-me: "Viste os grous? Dizem que são mais de setenta mil! Estão a habituar-se a ficar aqui no inverno, porque já não é tão frio como antigamente. O problema é que se um ano destes vier um inverno realmente severo, já não haverá grou nenhum que tenha aprendido o caminho para o sul com os grous mais antigos. Vão morrer todos!"

 


Em "Vila Feliz", no Advento, os vizinhos encontram-se nos quintais uns dos outros, de volta de uma fogueira com uma caneca de vinho quente na mão.
Este ano estavam a queixar-se que o calendário lhes roubou a possibilidade de mais um encontro, porque o último fim-de-semana de Advento coincide com o Natal. Ao fim de umas horas na conversa com eles, de volta da fogueira (e do meu chá, porque tinha de levar o carro de volta para casa), bem lhes percebi a tristeza: há algo de único nestes encontros tão simples e amáveis. E é em momentos assim que entrevejo o que havia de realmente positivo na RDA: laços humanos que não precisavam de grande logística, consumo e ostentação, para se afirmarem e reforçarem.

Um pouco mais tarde, à mesa da cozinha, um casal amigo dos Kaminer começou a contar:

"Nós os dois éramos tratadores de animais num zoológico. Um dia, tivemos de fazer uma cesariana a uma leoa, e ela rejeitou as crias. Três leoazinhas. O director do zoológico perguntou-me se a minha mulher podia criá-las, já que estava em casa em licença de maternidade. Ela aceitou, e eu levei as três bichinhas num cesto de vime com tampa para o nosso apartamento, que era num prédio de dez andares. Fizemos-lhes umas papas com leite e aveia, que elas comeram avidamente. Mas não saía nada pelo outro lado. Ao fim de três dias, deixaram de comer. Arranjámos um tubo ligado a uma seringa, e metemos-lhes parafina pelo lado de baixo do tubo digestivo, não sei se me está a entender. Depois fomos dormir, mas às quatro da manhã acordámos com um cheiro estranho. Olhámos para o cesto, e vimos uma massa castanha a sair por todos os interstícios. Abrimos a tampa, e demos com um espectáculo miserável: as leoas também estavam castanhas. Só se lhes viam os olhinhos.
Metemo-las na banheira - no nosso prédio já havia esses luxos de banheira e água quente - e usámos um champô para bebé que uns amigos da Alemanha Ocidental nos tinham oferecido. Ficaram um espectáculo! O pelo muito encaracoladinho, pareciam caniches.
Passados uns dias o guarda do prédio tocou-nos à campainha. Disse que os vizinhos se tinham queixado de ouvir barulhos esquisitos na nossa casa, e queria saber o que se passava. Eu disse-lhe "conto-te a ti, mas não contas a mais ninguém, ouviste?" - e mostrei-lhe as leoas pequeninas. No dia seguinte tínhamos uma fila interminável de vizinhos à porta, que também queriam ver. "Eu só disse a uma pessoa!", defendeu-se o guarda.
A nossa filha tinha um ano, estava na fase de gatinhar. Não dizia nem mamã nem papá, mas seguia as leoas para todo o lado, e quando uma delas rugia a nossa filha rugia igual.
Tivemos de as mandar embora ao fim de onze semanas, quando as garras começaram a crescer."

Em suma: no domingo passado jantei com os pais da Mogli da RDA.
E lembrei-me de novo de uma pergunta que um entrevistador da RTP fez ao Kaminer, em Lisboa: "o senhor inventa as histórias surreais que escreve?"
Não. Não inventa. Limita-se a organizar uma fogueira e um vinho quente para os vizinhos, e a ouvir as histórias que estes contam.

O que me lembra mais uma história divertida que ouvi a outro amigo dos Kaminer: "na aldeia da minha irmã havia uma empresa de escavadoras que foi à falência. Alguém comprou o parque industrial da empresa e fez nele um parque de diversões. Por um euro, os homens que em criança sonhavam ser condutores de escavadora podem realizar o seu sonho. Vão para lá aos fins-de-semana, levam a família, e andam felizes como putos pequenos a escolher a escavadora que vão conduzir e a areia que vão mover de um lado para o outro, sob o olhar aprovador da sua mulher."

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