08 fevereiro 2018

esta mulher: Anita Lasker-Wallfisch


No passado dia 31 houve no Parlamento alemão, como é habitual em Janeiro, uma sessão de homenagem às vítimas do Holocausto. O presidente do Parlamento, o nosso conhecido Wolfgang Schäuble, começou por afirmar que não se trata apenas de lembrar as vítimas e de ficar chocado com esta página da História, mas de tirar dela ensinamentos para o futuro. Perante uma assembleia onde há agora deputados do partido populista de direita, a AfD, que tem entre os seus membros alguns simpatizantes do negacionismo, Schäuble disse que todas as nossas certezas se desfazem em Auschwitz, e que a maior lição que se pode tirar do período nacional-socialista é a tomada de consciência da fragilidade da nossa sociedade civil e da nossa liberdade.
O comportamento dos deputados da AfD não causou surpresas: não aplaudiram quando Schäuble falou nos crimes de ódio praticados contra pessoas com um aspecto diferente dos alemães, ou até contra refugiados, e que decorrem num ambiente de indiferença e mesmo incitação. Em contrapartida, apressaram-se a aplaudir com entusiasmo quando Schäuble criticou aqueles que queimaram bandeiras de Israel nas recentes manifestações de pró-palestinianos contra a instalação da embaixada dos EUA em Jerusalém. Não aplaudiram quando ele disse que quem diz "povo" para se referir apenas a uma parte da população do país está a ferir os princípios básicos desta sociedade - e como poderiam aplaudir, se aquela crítica lhes era dirigida?

A seguir a Schäuble falou Anita Lasker-Wallfisch, sobrevivente de Auschwitz e de Bergen-Belsen. Esta mulher de 92 anos contou a sua história numa voz extraordinariamente segura e fresca. Ao seu relato acrescento aqui alguns detalhes que li na sua biografia.

Depois da deportação dos pais, ela e a irmã Renate ficaram num orfanato e faziam trabalhos forçados numa fábrica de papel onde também havia prisioneiros franceses. Para os ajudar a fugir, forneciam-lhes documentos falsos. Quando as suas actividades começaram a levantar suspeitas, fizeram documentos para si próprias, tentando fugir para França. Foram apanhadas. No caminho para a esquadra, engoliram o cianeto que o amigo Konrad Latte (que escapou ao Holocausto arrancando a estrela da sua roupa e misturando-se com a restante população; depois da guerra, criou a Berliner Barock-Orchester) lhes tinha dado em cápsulas, para aquela eventualidade. Por sorte, Konrad Latte não tinha tido a coragem de lhes dar o veneno, e trocara-o por farinha. Bem surpreendidas ficaram elas por não terem sintomas de envenenamento. O tribunal condenou-as a um ano de prisão. A pena tão pesada era um artifício de alguns juízes desse tempo: enquanto os judeus estivessem presos, não eram deportados. Anita acabou por ser enviada para Auschwitz sem a irmã, num grupo de presos de delito comum, o que lhe permitiu escapar ao processo de triagem para a câmara de gás. Para sua grande sorte, descobriram que sabia tocar violoncelo e meteram-na na orquestra de raparigas do campo. Foi assim que conseguiu escapar à máquina de destruição de Auschwitz.
Um dia, ao passar pelo monte de roupa deixado à entrada da câmara de gás pelas pessoas do transporte mais recente, reconheceu os sapatos da irmã Renate. Correu a chamar um responsável, dizendo que estava ali uma pessoa que sabia tocar violino e era fundamental para a orquestra, e conseguiu salvá-la no último momento.
Quando a frente oriental começou a aproximar-se de Auschwitz, os nazis levaram muitos dos prisioneiros para Bergen-Belsen, um campo sem câmaras de gás, mas com condições ainda mais extremas de doença e fome. Apesar do tifo e da fome, as duas irmãs conseguiram sobreviver, e estão hoje entre as últimas testemunhas vivas deste crime organizado contra a Humanidade.

Anita precisou de quase cinquenta anos para conseguir voltar à Alemanha. A partir de 1994 começou a fazer palestras neste país para dar o seu testemunho e conversar com as pessoas.

No Parlamento alemão, depois de contar a perseguição de que ela e a família foram vítimas no Holocausto, falou das fronteiras fechadas e da impossibilidade de fugir ao horror, e louvou o gesto - "generoso, corajoso, humano" - da Alemanha de abrir as fronteiras para acolher os perseguidos de hoje. Fez uma pausa, olhou para Angela Merkel. A sala toda aplaudiu - excepto os deputados da AfD.

[Faço uma pequena divagação: quem visita a cúpula do Parlamento pode ver uma exposição fotográfica sobre a história daquela instituição. Às fotografias dos deputados da República de Weimar seguem-se imagens do nazis no Parlamento. Numa delas, vêem-se os deputados nazis, todos com o uniforme do partido, de costas viradas para o plenário. Foi essa imagem que me ocorreu ao ver os deputados da AfD a recusar o aplauso a uma sobrevivente de Auschwitz que lembra que as fronteiras fechadas foram um dos factores que permitiu o assassínio de seis milhões de judeus, e que apela à generosidade para com todos os perseguidos deste mundo.]

Também falou da orquestra de raparigas de Auschwitz como um microcosmo do nosso mundo. Várias nacionalidades, uma autêntica torre de Babel. Por não entenderem a língua das outras, não se falavam. O silêncio e a incapacidade de comunicar alimentava as desconfianças de parte a parte. Estas mulheres passaram os dias negros de Auschwitz tocando a mesma música sem se entenderem. Só muitas décadas mais tarde é que ela falou pela primeira vez com uma das polacas da orquestra.
Apelou aos deputados: "falem uns com os outros, construam pontes!"

Referiu também um episódio muito desagradável que aconteceu em 2017. Num restaurante da Baviera, preparava com o filho de Hans Frank, governador-geral da Polónia e conhecido como "o carniceiro dos judeus", a palestra que iam dar para algumas escolas. Um cliente do restaurante ouviu aquela conversa e dirigiu-se à mesa deles furioso, para criticar eles estarem a dar cabo do ambiente, que estava tão bom, com aquelas conversas sobre Auschwitz.
Perante os deputados da AfD, afirmou: "há cinco anos isto não teria sido possível na Alemanha. Tenham cuidado!"

A sessão inteira pode ver-se no vídeo do princípio do post, com tradução simultânea para inglês. No site do Parlamento, de onde trouxe o filme,  também se pode ler o discurso de Anita Lasker-Wallfisch em alemão.  


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