01 março 2018

a "hipocrisia dos progressistas"

Queria falar deste tema há já algum tempo, mas a Berlinale meteu-se pelo meio, e uma pessoa não dá vazão. Aconteceu no Governo Sombra de 4.2.2018: o Pedro Mexia falou de uma nova lei em Amesterdão que impede as pessoas que visitam o red light district de olhar para as senhoras nas montras. As pessoas têm de ficar de costas, para manter o respeito. Disse ele: "Estamos a falar de senhoras nuas ou seminuas, numa montra com uma luz vermelha por cima, expostas aos clientes. Mas o que é badalhoco: é o olhar." (aqui, ao minuto 58:10)

Se tivesse sido apenas isto, era uma boa piada à maneira do Governo Sombra. Mas a introdução ao tema - acusando a "hipocrisia dos progressistas" - e o aparte "lá está: todas as semanas temos leis para comentar" transformam uma piadinha em mais um exemplo da famosa estupidez dos tempos que correm. Antes que a Bárbara Reis junte esta piada ao seu rol de casos estapafúrdios do politicamente correcto, cá vamos aos factos:

Para começar, não é uma lei. É um regulamento para os profissionais que andam com grupos turísticos na cidade. Perante o aumento brutal do número de turistas em Amesterdão e do consequente incómodo para quem lá vive ou trabalha, as autoridades municipais viram-se obrigadas a impor regras que permitam a coexistência mais ou menos pacífica entre os da terra e os visitantes. Para os guias que levam grupos de turistas ao Wallen, o tal famoso red light district, impõe-se o seguinte:

- Tours must be finished by 11:00 PM at the latest.
- Groups are not allowed to stand still at locations that may be particularly prone to traffic, like the canal bridges along Oudezijds Achterburgwal and store entrances during opening hours.
- Taking photos of sex workers is prohibited, and guides have to ensure that groups stand with their backs to the sex workers.
- Speakers or megaphones, shouting, and alcohol and drug use are prohibited during the tours.
- Before the tour starts, the guide must instruct the tour groups to show respect for local residents, businesses and sex workers.

O que mais me choca nestas regras é que tenha sido preciso escrevê-las. Em princípio, é óbvio que os turistas não podem perturbar a ordem pública, e que devem respeitar as pessoas do bairro. Também me parece óbvio que aqueles que ganham a sua vida com visitas guiadas ao bairro deviam ser os primeiros a velar para que o seu negócio não colida com os interesses que fazem do local um ponto de atracção turística. Chama-se a isso: "não matar a galinha dos ovos de ouro".  

Quando visitei esse bairro pela primeira vez recomendaram-me muito que deixasse a câmara fotográfica no fundo do saco, porque me arriscava a que me partissem a câmara, ou a cara, ou ambas. De cada vez que lá vou, repetem o aviso. De modo que não tenho qualquer dúvida sobre o que pode começar a acontecer naquelas ruas se os guias aparecerem com grupos de dezenas de turistas e os deixarem ficar pespegados em frente às montras a olhar demoradamente para as mulheres e para os clientes. E não vejo qualquer "hipocrisia dos progressistas" no facto de um Estado impor regras para tentar conciliar interesses antagónicos no espaço público, em vez de deixar que uma das partes resolva o assunto à bofetada.

É certo que tudo aquilo é sórdido. Mas será que a sordidez do contexto basta para desculpar um olhar despudorado? A resposta pode ser dada por um miúdo de seis ou sete anos - como foi dada pelo meu filho, quando comentou que não gostava nada de ir à sauna, porque "tinha de se concentrar muito para não ver". Que é como quem diz: independentemente do contexto, a nossa atitude é comandada pela nossa educação e pela nossa ética.  

Estima-se que cerca de metade dessas mulheres de Wallen não se prostitui de livre vontade. Algumas foram apanhadas pelas redes mafiosas na Europa de Leste, que as trazem para o centro da Europa prometendo-lhes trabalho e uma vida melhor. Em algum momento são violadas, forçadas à prostituição, e ameaçadas de que, se fugirem ou forem à polícia, alguém contará na aldeia delas que são putas, cobrindo-lhes a família de vergonha. Outras trabalham para pagar as dívidas e as despesas dos proxenetas, a que elas chamam namorados. Nos dois casos, é dificílimo ao aparelho do Estado ajudar as vítimas, porque elas são as primeiras a recusar o auxílio estatal.
Perante realidades tão sórdidas, o mínimo que se pode fazer é não olhar para essas mulheres como se fossem uma mercadoria.

Digam lá, a sério: é normal e aceitável um grupo de turistas estar parado na rua, em frente a uma mulher seminua, a apreciar e a comentar o corpo dela? E a olhar também para o cliente, a assistir à negociação, a apreciar com que cara sai depois de ter passado os tais quinze minutos com ela? Independentemente da sordidez de todo aquele ambiente: parece-vos estranho que a Câmara estabeleça padrões de comportamento para os guias que lá levam turistas? Não seria muito mais estranho que a Câmara se demitisse, e deixasse a situação evoluir para confrontos violentos entre as pessoas do bairro e os turistas?

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