26 abril 2018

a gargalhada do dia: "A palavra Descobrimentos não está proscrita nem tem peçonha"

Em resposta à carta dos académicos que se pronunciam contra o uso da palavra "Descobrimentos" no nome de um museu sobre a época da expansão marítima portuguesa, João Pedro Marques escreveu um texto de opinião no DN, com o título "A palavra Descobrimentos não está proscrita nem tem peçonha".

Respondo seguindo a ordem dos argumentos dessa crónica:

1. "As palavras não são propriedade de ninguém nem prisioneiras de nenhum período histórico. O facto de Descobrimentos ter sido usada e abusada no período salazarista não desclassifica a palavra nem a contamina para todo o sempre".
Lida aqui na Alemanha, esta afirmação é simplesmente ridícula. Explico recorrendo ao exemplo mais fácil - a contaminação nazi. Todos conhecemos palavras e expressões que já existiam antes do séc. XX, mas que hoje em dia não conseguimos usar sem pensar imediatamente nesse período negro da História: "Führer" (que antes de Hitler significava apenas "guia"), "solução final", "degenerado", "Arbeit macht frei", "Jedem das seine", "povos" (no sentido de "raças") e "repovoamento" (no sentido de "substituição de uma raça por outra"), "tratamento especial", "casamentos mistos", "selecção".
Na língua portuguesa também há palavras e expressões que já não podemos dissociar da carga que o Estado Novo lhes deu. Por exemplo: "ultramar" é muito mais que "do outro lado do mar", "portugalidade" é muito mais que "qualidade própria do que é português", "dia da raça" é muito mais que "comemoração de um conjunto de caracteres físicos hereditários". 

Sabemos que é da própria natureza das palavras ganharem, ao longo da História, cargas e sentidos dos quais passam a ser indissociáveis. Também sabemos que as palavras servem muitas vezes como molde para a produção de uma determinada imagem ou interpretação da realidade e para o reforço de ideologias. Essa produção de imagens e interpretações faz-se por recurso ao eufemismo com o objectivo de impedir a tomada de consciência da realidade (é o caso de "descobrimentos", mas também posso referir exemplos do léxico nazi, tais como "transporte" em vez de "deportação e extermínio" e "eutanásia" em vez de "assassinato de pessoas com doenças mentais"), e faz-se também usando determinadas palavras que condicionam o pensamento em grelhas ideológicas ou de preconceitos. Um exemplo actual deste segundo caso: a extrema-direita alemã está a reintroduzir no espaço público algumas das palavras do léxico nazi, como teste aos limites impostos pela sociedade e como ferramenta para actuar sobre a interpretação dos factos. O modo como falam dos refugiados ("ameaça", "invasão", "risco de perda de identidade", "repovoamento") é um caso muito óbvio de apropriação e reprodução do discurso nazi, levando as pessoas a ler o que acontece hoje em dia neste país segundo essa grelha ideológica. Trocando por miúdos: os refugiados serão "povos inferiores" que ameaçam os "arianos".

"Descobrimentos" é um caso óbvio de escolha de uma palavra para ocultar parte importante dos factos e oferecer uma "realidade" idealizada. Este caso é tanto mais interessante quanto a palavra foi imposta há quase 500 anos pelo rei espanhol Filipe II: "Los descubrimientos no se den con título y nombre de conquistas pues hauiendose de hazer con tanta paz y caridad como deseamos no queremos que el nombre dé ocasión ni color para que se pueda hazer fuerça ni agrauio a los Indios." Na altura em que estas Ordenanças foram escritas, a descoberta da América já ia a caminho dos cem anos, os conquistadores já tinham um largo historial de chacinas, violações e raptos - mas o rei insiste que se trata de uma missão de paz, conduzida sem agravo para os índios, e impõe o uso do nome "descobertas". Mais: acredita que ao impor o uso de um determinado nome vai conseguir alterar os comportamentos e agir sobre a realidade.   

2. "A França tem vários museus napoleónicos. Os seus nomes evocam um homem odiado por muitos dos povos que os seus exércitos trucidaram. Deveriam tais nomes mudar para atender à visão negativa que os portugueses, por exemplo, conservam das invasões francesas? Não oiço defender tal coisa nem me consta que haja gente chocada com os museus de Napoleão."
Ninguém pede para mudar o nome, porque os museus já têm o nome certo. Se se chamassem "Museu do glorioso esforço francês de levar os seus melhores valores e progresso a toda a Europa", ou algo assim, haveria com certeza resistência por parte dos outros países. Resistência, ou chacota. Ou ambas.

3. "Todos valorizamos, e bem, a visão do outro, mas a ideia de que se pode ver e contar tudo de todos os ângulos em simultâneo, e que isso constitui por si só um enriquecimento, é algo ingénua porque, por norma, na narrativa histórica - e, presumo, museológica - aquilo que se obtém por um lado perde-se por outro. O que se ganha em diversidade perde-se em profundidade e uma acumulação de diversidades pode levar a um bloqueio ou a uma salada-russa."
A diversidade das perspectivas é condição sine qua non da profundidade da abordagem. Caso contrário, faz-se um museu apenas para um certo tipo de clientes. Também se pode fazer, claro, mas nesse caso é melhor que o museu não conste dos guias turísticos, nem tenha textos traduzidos para outras línguas, nem nada. A exemplo de um museu militar que um amigo meu viu no Japão: tudo muito bonitinho e bem explicado em japonês e em inglês, por ordem cronológica. Mas quando se chega à segunda guerra mundial, tem lá uma salinha escondida, com textos apenas em japonês. É sobre os kamikaze...
Será possível fazer um museu dos descobrimentos que fale apenas dos navegadores, das rotas, dos ventos alísios, das embarcações e dos fabulosos progressos técnicos? É possível, sim. Mas no século XXI, nesta fase avançada do pós-colonialismo em que nos encontramos, vamo-nos cobrir de ridículo perante o mundo se fizermos um museu com esta abordagem tão afunilada e autocomplacente. 

4. A crónica termina assim: "Sei que esse nome suscita reservas e anticorpos na academia, mas ele faz sentido tanto dentro como fora do país, pois é em boa medida pelas grandes viagens marítimas e seu resultado que Portugal é conhecido no mundo."

Beeeem... no mundo por onde tenho viajado, Portugal é conhecido pelo Cristiano Ronaldo (e antes, pelo Figo). Os descobrimentos portugueses serão, quando muito e apenas para alguns, uma nota de pé de página. Quando falo com estrangeiros que conhecem o fenómeno, não é de "descobrimentos" que me falam, mas de "expansão", "conquista" e "colonialismo". Excepto num caso, o de uma alemã que conhece bem a cultura portuguesa, e se riu do orgulho e da fixação que temos nos nossos descobrimentos, como se tivesse sido tudo fantástico e como se desde então não tivéssemos sido capazes de fazer mais nada digno de menção.

E quem conhece realmente a História, que diz de nós? Há cerca de quinze anos, numa exposição sobre essa época da expansão marítima europeia, no Museu de História Alemã em Berlim, fiquei a saber algo que em Portugal nunca ninguém me tinha contado: Fernão de Magalhães fez a sua famosa viagem de circum-navegação sob bandeira espanhola. Por ter caído em desgraça na corte portuguesa, vira-se obrigado a pedir apoio à corte espanhola. Também se mencionava que Colombo começou por apresentar o seu projecto ao rei português, e só depois da recusa deste se dirigiu ao rei espanhol. Confesso que saí dessa exposição em choque: a exposição alemã, que tratava o tema que em Portugal me fora ensinado como a página mais gloriosa da nossa História, dava da corte portuguesa dessa época a ideia de palacianos incompetentes, intriguistas e sem visão.

Desengane-se portanto João Pedro Marques: no resto do mundo, não é pelos seus "descobrimentos" que os portugueses são conhecidos. É mais pelo futebol, e - entre as pessoas com mais cultura - pelo seu passado expansionista e colonialista, pelo comércio de escravos no Atlântico, pela guerra colonial. Dos estrangeiros que visitem um "Museu das Descobertas" não se pode esperar a mesma tolerância e boa vontade de quem foi socializado nas escolas do Estado Novo. 

2 comentários:

jj.amarante disse...

Há potências mais continentais e outras que são talassocracias, projectam-se no exterior controlando os mares. O império britânico foi e a superpotência americana é uma talassocracia e este tipo de países costuma apreciar a contribuição portuguesa na exploração de novas rotas marítimas. Já os países com tendências mais continentais, como a França e a Alemanha costumam dar menos importância às actividades marítimas dos portugueses. Lembro-me por exemplo do livro "Os Descobridores" do Daniel Boorstin (director da biblioteca do Congresso dos EUA) que dá uma versão detalhada dessa actividade notável e bem sucedida de Portugal, sem omitir o tráfico de escravos e os métodos terroristas por exemplo usados na Índia por Vasco da Gama.
Quando passei pelo liceu aprendi a recusa de D.João II em financiar a expedição de Colombo que queria atingir a Ìndia viajando para Ocidente quando toda a informação que o rei dispunha o levava a supor que era mais provável que o melhor caminho seria contornar a África, como se veio a comprovar.
E também me ensinaram em pleno Estado Novo que a primeira viagem de circunnavegação do globo foi feita pelo Fernão de Magalhães a soldo do rei de Espanha, concluída por Sebastião del Cano, porque o Fernão de Magalhães morreu num combate nas ilhas Filipinas. Na realidade o rei Espanhol teria mais interesse em financiar essa expedição porque poderia existir na Ásia uma região que poderia "pertencer" à coroa espanhola, na sequência do tratado das Tordesilhas.
Em Lisboa, na praça do Chile, existe até uma estátua ao Fernão de Magalhães, precisamente oferecida pelo Chile, país onde se situa o estreito de Magalhães, que permite evitar o cabo Horn.

Jaime Santos disse...

Não podia estar mais de acordo, mas faço um reparo. A mim, que cresci nos anos 70 e 80, sempre me ensinaram que a viagem de circum-navegação era de Magalhães-Elcano, o navegador basco que completou a viagem, dado que Magalhães foi morto nas Filipinas. Nunca me esconderam que a viagem foi feita ao serviço do rei de Espanha...